O ESTADO DAS TERMAS
A história não se passa nas Termas de Luso mas na Clinica que agora a substitui e o protagonista é um velho frequentador do balneário que por nostalgia ainda hoje regressa durante o verão para beber as suas águas e fazer o seu tratamento. Às vezes diz que só a morte o impedirá de vir, mas há dois anos a esta parte antes de vir para o Luso, já passou por outra estância termal, aquela para onde o atiraram para fazer as grandes obras de reduzir as termas a um terço do seu antigo espaço. É apenas a saudade que o traz cá e a preguiça numa mudança de afectos enraizados na alma que o mantêm fiel á tradição. Aliás são poucos mais que estes dinossauros os frequentadores das desarticuladas termas, encolhidas em espaço, em serviços e em capacidade de receber mais que meia centena de aquistas de cada vez, na prática. Há alguns tempos atrás enchiam-se com centenas de clientes hoje com cinquenta estão esgotadas. Como convêm. Na porta um aviso visível não deixa dúvidas a ninguém, «entrada reservada a clientes da clínica fulano tal…».
Nesta sede de emagrecimento, o bloco da fisioterapia também encerrou embebido na anestesia dum engodo sem isco posto pela concessionária e que alguém voluntariamente bebeu não se sabe porque preço. Uma cicuta tomada com gosto pelos eleitos locais que tão pauperrimamente tem tratado os assuntos da freguesia do Luso e das Termas.
Apesar de tudo o Albuquerque, nome fictício, chega sempre em Setembro, não se exime á eventualidade de acompanhar o balneário até ao derradeiro cliente, ao último estertor, ao derradeiro ano. Instala-se, vai á consulta e começa o tratamento. Num desses dias deixou o relógio de pulso no balneário juntamente com a roupa e só quando submergia na banheira de água quente deu conta da sua falta mas como existia um relógio pendurado na parede achou que o iria seguir para controlar o tempo. Porém, quando se fixou no pequeno aparelho verificou que estava parado. Ao chegar a empregada para dar por terminado o banho descontrolado perguntou-lhe o que estava ali a fazer o relógio, se afinal não funcionava!
Bom, a mulher desculpou-se o melhor que conseguiu, trabalham sobre pressão, até dizer atrapalhada que estaria avariado e que o técnico ainda não tivera oportunidade de vir arranjar o realejo.
-Que técnico, perguntou o Albuquerque? Ponham cá outro relógio e deitem este no lixo! Retorquiu o banhista ciente do seu reparo. E acrescentou:
-Se quiserem, eu amanhã trago um igual e penduro-o aí.
-Oh não, senhor Albuquerque, por amor de Deus, isso ficava-lhe caro…
-Caro como menina? Isso é um relógio chinês, custa três ou quatro euros!...
-Como é que sabe que é chinês?
-Já o tirei para verificar a origem e sei onde os há a esse preço. Diga lá á direcção que se não tiverem dinheiro terei gosto em oferecê-lo.
Por outro lado, a Dona Genoveva Vasconcelos, Genovevinha ou Genoveva velha conforme é conhecida pelas costas desde que as empregadas são empregadas, que se diz marquesa das terras de Monforte no Alentejo pelo lado do falecido marido e frequenta as termas desde que se viu nascer, melhor dizendo, desde que se conhece, voltou este ano para o Grande Hotel. Dali passou ao balneário para efectuar os tratamentos, por aquilo a que chamou horrorizada o túnel do purgatório. Foi a primeira vez que veio depois das obras de encurtamento da estrutura termais, (encolhidas conforme agora estipula o contrato de concessão conluiado com Estado e Câmara) e logo após a primeira sessão a vontade de ir embora espelhava-se na face enrugada pela idade mas madura pela experiência. E dizia insatisfeita:
-Então ó senhor Amado, não é que saímos das instalações do hotel por um corredor que parece nunca ter sido limpo e entramos numa espécie de inferno?
-Inferno? Admirou-se o Amado de olhos abertos de espanto.
-Sim senhor, todas as funcionárias vestidas de preto, carregadas de luto…! Assim fui despejada do túnel, enfrentando aquele atendimento de negro, fiquei aterrorizada!!!!! Estou na antecâmara da morte, ou num velório de defuntos? Pensei mais adiante perante uma fileira de velas acesas ao longo dum corredor. Disse mal da minha vida e quis regressar a casa imediatamente. Não fosse o respeito pelo esforço feito pela minha filha arranjando tempo para me acompanhar ás termas durante os quinze dias de tratamento e iria embora de seguida.
-E depois, sr. Amado, as termas não são aquilo que eram, minguaram, apertaram-nos contra paredes em cubículos onde mal se cabe, não há espaço nem bem-estar!
Estas historietas, ou aquela do termalista que chega ao Largo do Casino e perante a indicação de clinica ali anunciada nas parangonas da tabuleta, pergunta se as Termas mudaram de lugar, servem para ilustrar o abandono em que a estância termal foi colocada e testemunhar o muito mau ano turístico do Luso, praticamente reduzido ao enchimento de garrafões na Fonte de S. João, coisa que anima o fim-de-semana dando a ilusão dum movimento que está longe de o ser. Na realidade, as Termas são uma catástrofe, acabaram para os agentes locais e não são estes turistas a que sem ofensa chamarei de pé rapado, porque em relação ao turismo termal são isso mesmo o que são, que alimentam o verão local em termos financeiros. O termalismo que alimentava a pequena economia local, acabou, é um pequeno resíduo em fim de ciclo e vida.
Há satisfeitos nisto? Sim, sem dúvida a concessionária que diminuiu as termas e a Câmara Municipal da Mealhada e os seus eleitos, que o consentiram. A quem cabe grande parte da responsabilidade desta catástrofe. Devem estar contentes com a obra e com o apoio que deram á concessão das termas, fisioterapia incluída, para arrasar aquilo que era a Vila Termal do Luso. Pessoalmente não tenho qualquer dúvida acerca desta cumplicidade, consciente ou não, entre autarcas e concessionários, que de um, passaram a dois, quiçá para confundir e irresponsabilizar os sucessos. Num país como Portugal, os factos tem que ser duplicados, triplicados, quadruplicados para que não tenham principio nem fim nem solução. E desaparecem responsáveis e culpados. Por isso todas as desgraças caiem sobre a mesma gente, o mexilhão e daí que a história pátria se escreva nos anais dos séculos quase sempre pelas linhas tortas da mediocridade dos poderes, pela ganância dos detentores da riqueza, pela incumprimentos das leis, pelo fio da guilhotina no pescoço do cidadão.
O meu amigo e conterrâneo Rebelo, um especialista em coisas desta área do turismo, um entre muitos dos pioneiros que foram do concelho da Mealhada para fazer o Algarve e por lá ficaram, falta por aqui um monumento a esta gente, apesar da grande intimidade e amizade que tem com o presidente da autarquia, escreveu a um jornal local uma carta relevando o assunto, dando também testemunho deste abandono, uma espécie de epitáfio á situação actual da terra e da sua actividade. Um cântico bíblico e cândido aos restos das termas do Luso encomendado juntamente com as luzes do velório.
Suponho que por estar longe o fará com extrema brandura mas o sentimento telúrico é o mesmo. E aponta o dedo às autarquias, aos comerciantes, aos lusenses em geral. Quanto aos eleitos paroquiais, nem existem no contexto actual. É com irresponsável silêncio que têm acompanhado pacificamente as doenças da terra, o definhar, o morrer. Ninguém reage ás barbaridades a que vamos assistindo. Por omissão, por incapacidade, por burrice, por eventuais incómodos? Não se sabe, talvez até pelos níqueis dos lugares que ocupam se remetam ao interesse do silêncio. Acomodam-se e se bem que a concessionária na minha opinião seja a principal liquidatária das Termas, não estão isentos de menos culpas a freguesia, o município e o próprio Estado através do órgão que concessiona a mina de água. Duns e doutros, eleitos da freguesia e do município, a concessionária faz há muito tempo gato-sapato, aproveitando a nula clarividência política dos eleitos para destruir as termas. Nem uns nem outros sabem defender os interesses locais e em abono da verdade tem-se colocado ao lado dos interesses dos estrangeiros detentores da riqueza contra os interesses municipais e do cidadão. Os eleitos da freguesia, também com prejuízos para as termas, é evidente, ainda que por várias razões pouco se lhes possa pedir.
A acompanhar a queda das Termas, dentro de pouquíssimo tempo fecha o último vestígio da água do Luso dentro do território da freguesia, o engarrafamento dos Moinhos e com ele o Luso fica definitivamente espoliadado do património do seu subsolo, sem um cêntimo que seja de contrapartida pela desenfreada exploração. Vergonhosamente, nem uma Junta de eleitos vicinais, nem um eleito na Câmara abrem a boca em protesto perante um facto consumado que, levianamente, ajudaram a consumar.
Não é coisa espantosa, corroborando a acusação do meu amigo algarvio, o Luso tem o que merece, não só pela apatia de todos nós como pela inércia dos representantes a quem deram os votos nas eleições. Quem cala, consente! Luso, Outubro,2012