A ESPERA DO NATAL
Quando no ano de 1582 uma bula papal de Gregório XIII substituiu o calendário Juliano pelo calendário Gregoriano conhecido a partir de então pelo seu próprio nome, alterou a contagem do tempo modificando datas tradicionais e isso mais adensou os mitos existentes sobre as comemorações e festejos decorrentes, quer de origem natural, social, histórica, religiosa, climática, catastrófica até, que os séculos anteriores traziam de gravação oral ou escritos marcados do tempo antigo. Hoje é comumente aceite que os solstícios tiveram grande influência nessas manifestações, tal como é aceite que do paganismo anterior ao fenómeno Jesus Cristo, herdou a nova doutrina muita da sua coreografia litúrgica, mas foi a bula gregoriana do séc-XVI, resultado dum estudo feito pelo jesuíta Clavius que, pelo decreto papal, estabeleceu o dia de Natal como sendo o do nascimento de um Deus. Mil quinhentos e oitenta e dois anos depois do primeiro dia, fez-se o aturado fruto dum estudo confuso e duvidoso que alterou a datação estabelecida que por sua vez já resultava da tradição e não da exactidão da suposição dos factos.Se bem que não faça grande diferença que o dia de Natal, dois mil anos após, seja hoje ou amanhã ou no mês que vem, pois conclui-se ser impossível determinar correctamente a sua época, há raízes que o tempo foi criando e essas, como a festa familiar, a exaltação do amor, os laços da fraternidade, do respeito e da amizade, são emoções sentidas que fazem parte da ética duma sociedade que em grande parte o nosso mundo europeu e ocidental assimilou e vive, como é o da quadra natalícia que hoje se transforma num negócio chinês que se estende pelo mês de Dezembro, entre o presépio dos cristãos, o pai Natal lapão, o Santo Claus dos nórdicos e as miríades de luzes das novas babilónias, cidades gigantes de espaço e criatividade, de crenças, de esperanças, de natais.É uma época ideal para o humano beber a magia irracional que sorve dos meios áudio visuais, tomada pela via duma milagrosa aspirina, ou droga que potencia sentidos e emoções. Idolatrado, génio e demiurgo, entre multidões uniformizadas consumimos cegamente e duma maneira absurda os séculos e séculos de cultura acumulada, em ideias e produtos falsificados pela máquina da indústria e do marketing, essa nobre ciência de enganar as gentes, esquecendo os velhos valores do homem, em favor da mistificação, do lucro, do exagero e da inutilidade.Esquecida a velha festa natalícia que dois pós guerras fizeram de pobreza, simplicidade, verdade e que as dificuldades e sofrimentos familiares reafirmaram, os festejos dos nossos dias são agora um exercício de oferendas e luxúrias e de franca exaltação aos novos bezerros de ouro do velho testamento, uma sociedade que parece ter perdido o equilíbrio do senso e da razão, para dispender em supérfluo aquilo que não possui, ou seja, a riqueza das pessoas, das famílias, das cidades, das sociedades, das nações.Adeus quente madeiro das lareiras, filhoses e velharacos da geração precedente que juntavam á sua volta o calor humano do clã cuja união e harmonia da natura vincavam os laços de consanguinidade e a fraternidade dos genes. Adeus refeição patriarcal servida na oligarquia ancestral das frias noites do Inverno.. Adeus manhãs, quando uma carripana de lata mal batida e mal pintada se transformava num quimérico bugati ou uma feia motrona cozida com jeito e trapos era bela Cinderela !Hoje, entre um quotidiano de guerras, crises, injustiças, morticínios, fomes, egoísmo e ambição, o sofisticado carrossel natalício amontoa o supérfluo, o inútil, o desnecessário a mentira, a crueldade, juntando ás festividades a abundância das luzes, dos plásticos, das resinas e das ceras, dos enfeites falsos dum presépio de resina, duma árvore artificial, dumas canções ou duns vídeos cujo único objectivo é facturar uma venda numa industria de milhões. O inócuo, o oco, o vazio, o deserto dos afectos, o presente que se segura num minuto e se atira para o lixo como de pouco valor no minuto que se segue. Num mundo onde não menos crianças morrem de fome, das guerras, de doença, de frio, de falta de medicina, de violência, de maus tratos, de abusos, em catadupas de imagens e palavras que nos entram porta dentro a cada momento perante a nossa indiferença.
Para lá da vergonha de nós próprios, humanos, o que significa afinal um dia de Natal a mais ou a menos nos fenómenos do nosso quotidiano? Que o escreva eu em hora de mau humor ou o predique Francisco, um homem sério em homilia, que diferença isso retira á crueldade do mundo?
Luso, 17 de Dezembro,2015 Águasdoluso.blogs,pt