CHEIROS QUE NÃO CHEIRAM
Luso, onde os cheiros não cheiram...
Há muito, muito tempo que não recebo cartas. De amor é impensável, esgotou-se, mas outras, mesmo essas, escasseiam nesta época de emails e de mensagens, de bites e celulares. Mas para espanto meu chegou hoje uma carta pelo correio e senti-me tão feliz que gritei para dentro alto e bom som como se fosse uma primeira vez:
-Recebi uma carta, Luciana, recebi uma carta!
Luciana é a gata. Não percebeu nada, está claro, levantou o focinho, cheirou o ar abafado dos dias de calor fora de tempo, deu duas turras na bainha das calças quando eu abri a porta e correu escada acima á minha frente. Estava com fome e entendeu deste aparato que ia chegar a hora. Antes porém rasguei o envelope da missiva, consultei os horóscopos quando vi o remetente e fui sentar-me a ler na sala dos meus solenes actos. Era a resposta a uma reclamação que tinha feito como cidadão municipal, junto, tanto quanto sei, com reclamações de umas centenas de cidadãos. Suponho assim não ser o único a receber das autoridades uma resposta ligada aos cheiros da baganhuça que nos incomoda as narinas e a saúde há uns anos a esta parte. A banha de Santa Eufêmia, no Luso!
Em termos ambientais estava convencido que o infestar da atmosfera com fumos tóxicos e vapores de benzeno, um químico nada aconselhável á saúde dos humanos, fosse um crime! Mas afinal não é. Fiquei a saber, não há crime, afinal os cheiros não cheiram!
Crime não,diz a carta, mas eu presumo, crime será um esfomeado roubar um casqueiro para matar a fome! Poluir esta coisa indispensável á vida a que se dá o nome de ar puro e oxigénio, com cheiros nauseabundos e lixos, não é crime nenhum e se não é crime há-de ser até uma virtude! De cheiros fiquei ciente através das autoridades, ou da carta, o que vem a ser o mesmo, que os cheiros deixaram de cheirar. Coisa estranha e complexa são os cheiros! E como diverge o peso entre quem os faz e não faz! Pensei!
Eu sei que Galileu Galilei abjurou os movimentos do sol antes que a Santa Inquisição lhe queimasse os miolos na fogueira! O que não seria grande perda para o Santo Oficio, mas seria para o género humano, ora que as autoridades deste país seguissem o mesmo caminho inquisitorial, nunca pensei! Os cheiros de facto não cheiram, apesar de há duas horas atrás não se poder suportar o ranço do solo á camada de ozono. Eu sei, que temos um ministro da educação cientista, mas daí até estender a metamorfose das escolas até às investigações das autoridades, não fazia a menor ideia! Coisas de sábios, de génios!
Bendita seja a autoridade que cheirando por milhares de reclamantes não cheirou cheiro nenhum! Claro que não reclamarei mais nada, a autoridade cheirará por todos. Prescindo do olfacto, aliás para que serve o olfacto se podemos viver tão bem só com os quatro sentidos? E da visão, um olho não chega? Uma mão no tato, uma orelha? Mais zarolho menos zarolho que importância tem isso? A autoridade cheira ou não cheira?
Há contudo uma dúvida que persiste e me incomoda no que tem a ver com a comparação entre os narizes dos milhares de munícipes que continuam a cheirar apesar desta abolição dos cheiros, e os narizes dos inspectores por parte das autoridades que vieram, olharam, mediram, cheiraram e não cheiraram nada. É que na incógnita dos narizes desiguais, uns de cheirantes outros de Pinóquios, pode estar a única via para o acerto da equação matemática sobretudo se levarmos em conta que o proprietário dos cheiros, um ypsilon que afirma não os provocar nem os cheirar e que tudo não passa duma cabala que não cheira mas que vê porque não é cego, é um negociante. Tal pai, tal filho!
Em face destas conclusões, cá estou para assinar a acção popular, mas pelo sim pelo não vou embalsamar a carta e envia-la ao Museu de Arte Antiga para expôr daqui a mil anos como relíquia dum passado cinzento. Se existir o mundo e o cinzento e um país de Alices, como este nosso recanto na beira do mar “pasmado” !
Vou dar comida á Luciana, coitada, passou-me de todo o diabo da gata! 10/2014